«Engravidar causa enjôo, desejos gastronômicos bizarros e (para as mamães mais vaidosas) um certo desalinho na silhueta. Nenhuma controvérsia aí. Desconfio, no entanto, que quase nenhuma gestante pense nos seus meses de gravidez como uma queda-de-braço ou uma batalha: um cabo-de-guerra no qual ela ocupa uma das pontas e o feto crescendo em seu ventre, a outra.
Ao contrário do que milênios de prosa e verso sobre as belezas da maternidade dizem, os interesses da mamãe e do bebê estariam longe de ser idênticos, segundo essa linha de pensamento. A idéia pode parecer mera intriga de quem ficou para titia, mas os fatos mais básicos da biologia dos mamíferos, se investigados com o devido cuidado, sugerem que essa é a mais pura verdade. Casando uma série de dados moleculares, fisiológicos e comportamentais, os cientistas estão usando essa queda-de-braço entre fetos e grávidas para explicar estranhas doenças e até para entender por que os animais clonados raramente são saudáveis.
O conceito-chave para entender essa bagunça toda tem um nome um tanto desajeitado: estampagem genômica. O que é “estampado”, ou seja, leva uma espécie de “carimbo” molecular, são os pedaços de DNA que todos carregamos no núcleo de nossas células. Dá para pensar nesses carimbos como uma espécie de certificado de procedência – materna ou paterna. Isso porque todos os organismos que se reproduzem por meio do sexo são, na verdade, a mistura meio-a-meio de duas influências diferentes: metade de seu DNA vem do pai e a outra, da mãe.
Na prática, os cromossomos -- as estruturas enoveladas que abrigam o DNA -- são transmitidas em duas cópias, uma materna e outra paterna. Existem razões muito boas para acreditar que essa origem mista do nosso material genético é uma receita para o conflito. Afinal, tanto machos quanto fêmeas “querem” (de forma não necessariamente consciente) aumentar ao máximo as chances de transmitir seus genes para as futuras gerações.
Só que cada um está usando, para isso, uma estratégia fundamentalmente diferente da do outro. A fêmea só consegue ter poucos filhotes por gestação, e por isso investe seu tempo e energia em cuidar bem deles, para que todos sobrevivam. Já o macho é capaz de engravidar um enorme número de fêmeas diferentes, se tiver sorte, mas não entra com as energias de seu próprio organismo para garantir que a filharada chegue à vida adulta. Ora, conforme as análises do funcionamento dos genes começaram a se sofisticar, os biólogos começaram a perceber um fenômeno esquisito. Uma proporção pequena (menos de 1%) mas significativa dos genes de mamíferos parecia sofrer um estranho “desligamento” seletivo: em alguns casos, era a versão paterna de um trecho de DNA que era desativada; em outra, a versão materna. Esse é o processo que ficou conhecido como estampagem genômica.
À primeira vista, o fato parecia simples burrice biológica. Acredita-se que uma das vantagens de possuirmos duas cópias de cada gene é parecida com a precaução de guardar cópias extras de um arquivo ou documento importante. Se o arquivo original for destruído (ou seja, se uma das cópias do gene sofrer uma alteração que o impeça de funcionar direito), a cópia ainda pode dar conta do recado.
Por que, afinal, jogar fora esse seguro de vida molecular? Filhinho da mamãe, filhinho do papai A coisa começa a soar menos maluca se imaginarmos, mais uma vez, que os genes paternos e os genes maternos podem ter “planos” muito diferentes para o pequeno ser que virá. (Falamos de “planos” apenas no sentido de influências biomoleculares inconscientes que, no futuro, aumentarão as chances de que aquele tipo de gene se multiplique. É lógico que pedaços de DNA não fazem nada de caso pensado – aliás, eles não pensam.).
É bastante lógico supor, por exemplo, que uma mãe grávida precisa balancear a nutrição que dará a seus fetos com a própria saúde e com suas chances futuras de ter mais filhos. Afinal, engravidar de novo mais tarde é seu único caminho para espalhar ainda mais seus genes. Papai, por outro lado, pode muito bem dizer “eu não tenho nada com isso”. Seus interesses, nesse caso, coincidem com os do feto. Enquanto está tentando inseminar outras fêmeas, é importante que seu filhão seja capaz de sugar o máximo possível de recursos da mãe, de forma a ter boas chances de virar um adulto saudável e fértil. Ou seja: nos casos de estampagem genômica, o esperado é que os genes paternos “desligados” sejam os que induzem maior retirada de nutrientes do organismo, enquanto os genes maternos “desativados” correspondam a uma diminuição do envio de recursos para os bebês. Isso, repito, é o esperado.
Será que ele se confirma na vida real? Por enquanto, tudo indica que sim. Pouca gente sabe, mas ao longo da gravidez o transporte de nutrientes não acontece só graças à bondade e ao carinho da mamãe: a placenta do feto lança projeções que invadem os tecidos da genitora e arrancam de lá os recursos necessários. Acontece que uma das doenças mais comuns ligadas a uma gestação, a pré-eclâmpsia (uma forma perigosa de pressão alta), parece estar ligada a uma substância que os fetos jogam na corrente sangüínea materna. Essa proteína impede que a mãe conserte pequenos danos nos seus vasos sangüíneos. Com isso, sua pressão arterial tende a aumentar, o que leva a aumentar a quantidade de sangue que chega até o feto via placenta. Quem cunhou o ditado caipira “bater na mãe por causa de mistura” (“mistura” em caipirês quer dizer o prato principal da refeição, para quem não sabe) parece ter profetizado essa estratégia chantagista dos bebês.
Nesse caso em particular, a relação exata com a estampagem genômica ainda precisa ser elucidada, mas ela já ficou clara no caso de dois genes, o Igf2 e o Igf2r. Os nomes parecidos não foram dados por acaso: na verdade, um pode ser visto como o ataque e o outro, como o contra-ataque. Basta dizer que o Igf2 estimula o crescimento rápido dos fetos. Em geral, é a cópia do pai que está “ligada” nos embriões. Se ela for desativada, filhotes de camundongo nascem com 40% menos peso. Já o Igf2r funciona como inibidor do Igf2.
Nesse caso, ocorre o contrário: a cópia paterna fica sempre desligada, para evitar filhotes muito pequenos. Se a cópia materna for desativada, parece que os limites ao crescimento fetal vão para o espaço, e os bebês-camundongos nascem com 125% mais peso.
Outros estudos confirmaram um duelo parecido entre dois genes ligados ao desejo de amamentação dos filhotes muito pequenos. E mais alguns trabalhos sugerem que também há uma variação na severidade da estampagem genômica dependendo do grau de monogamia da espécie: se o casal for fiel, terá seus filhos sempre como uma unidade e, portanto terá interesses genéticos parecidos na gestação e na criação deles. Existem mesmo indícios de que os problemas de saúde dos animais clonados -- muitos nascem com tamanho acima do normal ou matam a mãe de aluguel durante a gravidez -- decorreriam de erros de estampagem genômica.
Sem a fecundação normal, o padrão típico de ativação e desligamento dos genes maternos e paternos não se instalaria, e teríamos então fetos tão "gulosos" que acabariam morrendo engasgados, por assim dizer, sugando mais recursos maternos do que deveriam para o seu próprio bem. Em conjunto, essas descobertas traçam um retrato épico de golpes e contragolpes, num combate sem fim pelo sucesso reprodutivo e, em última instância, evolutivo. Definitivamente “guerra dos sexos” e “conflito de gerações” não foram inventados pelo bicho homem. »
Fonte:Midiamax
Link:http://www.midiamax.com/view.php?mat_id=310998
segunda-feira, 14 de janeiro de 2008
Para pesquisador, feto e mãe vivem em guerra durante gravidez
Postado por Paulo Pires às 1/14/2008 09:35:00 da manhã
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário